Diante de olhares perplexos do Brasil e do mundo, imagens perturbadoras, resultado de uma investida cruel contra uma população, estampam os jornais e telas de todo o mundo. O relato a seguir tenta extrair um pouco do que vem acontecendo cotidianamente junto aos nossos povos indígenas e como isso tem sido ocultado pela grande mídia.
TEXTO e FOTOS: Daniele Rodrigues.
ARTE: Elidiomar Ribeiro
Yanomami, uma palavra que, até o ano passado, era desconhecida da maioria das pessoas. A tragédia que atingiu esse povo nos revela algo muito mais complexo do que a miséria mostrada nos meios de comunicação.
Como indigenista, tenho lidado com os mais diversos aspectos dos povos originários. Em 2012, durante a Cúpula dos Povos (imagens ao lado e abaixo), conheci Ailton Krenak e o líder Yanomami, Davi Kopenawa, dentre outras lideranças. Ailton Krenak detalhou, didaticamente, os esquemas da elite brasileira para invisibilizar, e assim, como consequência, dizimar as populações originárias. Algo que, infelizmente, venho constatando pessoalmente, como testemunha ocular dessas tragédias.
Durante minhas expedições, tenho visto o esquema escancarado, tão bem descrito pelo líder Krenak. A elite brasileira, blindada em seu poder, se ostenta da impunidade.
Para exemplificar, vou contar como fui do Rio de Janeiro, para o território da Reserva Indígena do Xingu. Uma viagem que, se não for de voo fretado, necessita de diversas etapas: O primeiro é ir até Goiânia. De lá, pegar um ônibus para uma das cidades mais próximas à reserva indígena, uma viagem que dura em torno de onze horas. Da cidadezinha até o início da reserva, o trajeto é de veículo off road. Deixando claro que território indígena só se entra com autorização.
Nas onze horas de viagem, saindo de ônibus de Goiânia, só existe um cenário: plantação de soja. Não faz diferença a hora em que olhar pela janela do ônibus, é a única coisa que você vai ver. Chegando à pequena cidade, com pistas muito largas e com asfalto impecável, você se depara com filas gigantes de mega caminhões transportando a matéria prima da monocultura da região. Tudo acompanhado de um calor seco e causticante. Já o transporte off road é feito por um “freteiro”, como são chamados os condutores desses veículos na região.
Ao longo da viagem, o simpático freteiro, nascido e criado ali na região, ia me apontando, com orgulho, as fazendas de soja que beiravam a estrada e nomeando os donos de cada fazenda. Pessoas famosas, políticos de carreira, profissionais da televisão, donos de meios de comunicação…
Já estávamos há algumas horas na estrada e lhe perguntei qual fazenda era a que estava a nossa esquerda. Ele me respondeu: “Essa é a mesma que vimos no início da viagem, pertence ao fulano.” No caso, se tratava de um político de extensa carreira no Brasil. Entendi então, de verdade, o que era um grande latifúndio.
Quando vejo essas terras no Google Earth, a Reserva Indígena do Xingu é uma floresta retangular ilhada por terras descampadas. Ver dali de onde eu estava, foi enxergar de um outro ângulo. Os responsáveis pela destruição agora tinham nome e sobrenome.
Esse relato foi para dizer que os Yanomami, embora não habitem as Terras Indígenas do Xingu, são vítimas de um mesmo esquema. E que os demais 304 povos indígenas que vivem hoje no Brasil sofrem o mesmo nível de vulnerabilidade. Os ataques são constantes. Eu ficaria dias e mais dias relatando tudo o que envolve esse esquema, mas pelo menos, desejo deixar registrado que a mídia sabia todo o tempo o que estava acontecendo com os Yanomami. Meios de comunicação independentes e até outros mais consolidados, como o caso da BBC, tentaram alertar o mundo sobre o que acontecia, mas a grande mídia corporativa não colocava o tema em pauta.
Desde o início do contato com os não indígenas, os Yanomami tiveram seus direitos violados. Servindo até de experimento para cientistas vindos de outras partes do mundo, passaram, nesses primeiros anos de contato, na década de 1960, pelo seu primeiro holocausto. Até hoje não se sabe ao certo quantas milhares de pessoas morreram contaminadas pelos experimentos naquela época. O governo, por sua vez, não fez esforços para protegê-los, tampouco a mídia se manifestou.
O cenário que vivemos hoje, porém, é ainda mais estarrecedor, pois foi construído como promessa de campanha do então candidato à presidência da república, Jair Bolsonaro, que em vídeo gravado em 2018, dentro do Congresso Nacional, disse: “Alô, pessoal de Roraima, é o Jair Bolsonaro. Em 2019, vamos desmarcar a [terra indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil com porte de arma para todos os fazendeiros.” Raposa Serra do Sol é o nome de uma Terra Indígena que abriga o povo Yanomami.
Apenas para dados de constatação. Em 2013, a WikiLeaks divulgou o nome das seis famílias que comandam toda a mídia de massa no Brasil. Um seleto grupo de milionários que, detém concentração de poder, e controlam também outros setores, como o cultivo em larga escala de monoculturas, em grandes latifúndios. E que fique clara a diferença entre a monocultura, na qual hoje o Brasil lidera a exportação de soja no mundo. Soja essa que é usada, principalmente, para a fabricação de ração de porcos na China. Atividade completamente diferente da agricultura familiar, a que de fato, produz alimentos para o consumo dos brasileiros.
Por fim, desejo que todo o sofrimento, todas as mortes e mazelas sofridas pelo povo Yanomami e por outros povos que não vieram à tona ainda, como os Guarani Kaiowa, sirvam, pelo menos, para que cada brasileiro sinta ao menos o constrangimento por tal situação. Agradeço ao amigo Michael Meneses e ao Portal Rock Press pelo convite e termino com as palavras do Darcy Ribeiro: “A dignidade da nação brasileira repousa na sobrevivência dos índios. Só me cabe dizer, agora, lamentando sentidamente que esta nossa nação brasileira não precisa mais de índio nenhum para existir. Mas não existirá jamais, em dignidade e vergonha, se deixar morrerem – morrerem até de suicídio – os poucos índios que sobreviveram à invasão quinhentista.” (Darcy Ribeiro, Primeira Fala ao Senado. Revista Carta, n. 1, 1991: 9). – Daniele Rodrigues.
Daniele Rodrigues é pedagoga, indigenista e produtora de filmes de animação de temática indígena. Seus trabalhos já foram apresentados em diversos festivais no Brasil e no mundo. Suas animações fazem parte do acervo do Museu do Índio no Rio de Janeiro. ASSISTA AQUI!
Elidiomar Ribeiro da Silva é professor de Zoologia da UNIRIO, editor-adjunto do periódico A Bruxa e editor do zine Homem-Leoa. Poeta amador e desenhista rascunheiro, é fã de cultura popular e rubro-negro de coração. Conheça seus trabalhos em @labeuc.elidiomar!