De agora em diante e para todo o sempre a data de 13 de setembro de 2022 há de marcar a despedida terrena de um dos mais amados/odiados/celebrados/defenestrados gênios da sétima arte: Jean-Luc Godard. Polemista nato, controverso, provocador, goste-se dele ou não, é simplesmente impossível passar incólume pelo cineasta franco-suíço e mesmo aqueles que não se julgam profundos conhecedores de cinema certamente em algum momento de suas vidas já ouviram alguma menção a Godard.
GODARD: O Adeus a Um Mestre da Sétima Arte!
TEXTO: Iuri Freire
IMAGENS: Divulgação
Nascido em Paris a 13 de dezembro de 1930 e tendo passado a infância e adolescência em Nyon, na Suíça, Godard retorna à sua cidade natal durante o pós-guerra a fim de concluir os estudos. É justamente nessa época em que começa a frequentar os cineclubes da capital francesa que exibiam filmes resgatados durante a ocupação nazista em solo francês. Essas sessões já eram frequentadas por figuras do porte de François Truffaut, Claude Chabrol, e Eric Rohmer, que alguns anos depois se tornariam críticos da renomada Cahiers du Cinema e posteriormente formariam o embrião da Nouvelle Vague (literalmente “nova onda”, termo cunhado pela jornalista francesa Françoise Girot), movimento cinematográfico responsável por abalar fortemente as estruturas do cinema moderno, conferindo a essa arte uma nova significação para o conceito de autoria: a chamada política dos autores.
Foi justamente ao olhar para o cinema estadunidense das décadas anteriores que esses promissores críticos/futuros cineastas deram-se conta de que, mesmo em meio a uma estrutura fortemente industrializada e pautada em interesses mercadológicos de grandes estúdios, era possível a realização de filmes que contassem com a assinatura de seus realizadores; nomes como Nicholas Ray, John Ford, Howard Hawks, Alfred Hitchcock, Orson Welles, entre outros, conseguiam imprimir suas marcas artísticas pessoais aos filmes por eles dirigidos, ao contrário do que, segundo os jovens turcos (alcunha dada aos críticos da Cahiers du Cinema em alusão ao movimento da Turquia que ambicionava a derrocada da monarquia naquele país) ocorria no cinema francês daquele período, ou seja, meados da década de 1950.
Feita esta breve nota introdutória, é chegada a hora de finalmente focarmos este artigo naquele que é declaradamente seu protagonista: Jean-Luc Godard. Em 1960 seria lançado seu primeiro longa-metragem, Acossado, filme que é posto ao lado de “Os Incompreendidos”, de François Truffaut e Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais, como os pilares iniciais da Nouvelle Vague.
Com argumento de Truffaut (e improviso comendo solto entre os atores) e direção de Godard, a trama de “Acossado” (foto ao lado) é aparentemente simplória: Michel Poiccard (interpretado por Jean-Paul Belmondo que seria figura recorrente na fase sessentista do diretor) rouba um carro em Marselha, assassina um policial e foge para Paris, onde pede abrigo a Patricia Franchisi (Jean Seberg), uma estudante estadunidense com a qual havia se envolvido amorosamente.
Por falar em Estados Unidos, a influência do cinema norte-americano em Acossado é nítida, o longa claramente flerta com elementos do noir e filmes de gângster. A questão aqui é a forma pela qual Godard absorve essas influências e se utiliza delas com o escopo de desconstruir e subverter a linguagem cinematográfica tida como padrão naquele período. A montagem do filme é repleta de descontinuidades simbolizadas pelo uso frequente do jump cut, quando um mesmo plano é fragmentado a olhos vistos pelo espectador, procedimento que se tornou corriqueiro a partir de então, mas que naquele contexto era visto como uma verdadeira aberração com a linguagem vigente na sétima arte, era como se Godard mandasse o realismo às favas enquanto se dirigia de forma provocativa ao espectador para afirmar: isto aqui é cinema!
Portanto não é de espantar que um filme de natureza tão iconoclasta tenha gerado brutal perplexidade – para o bem e para o mal – perante público e crítica. Pode soar clichê, mas o fato é que a partir de Acossado o cinema jamais seria o mesmo, estava construído o alicerce que seria responsável por respingar em cineastas de todos os cantos do mundo, desembocando em “ondas novas” cinematográficas que, mesmo que não tenham sido geradas necessariamente por influência direta da Nouvelle Vague, seriam atingidas em maior ou menor grau pelos ventos que sopravam da França.
No Brasil, o Cinema Novo de Glauber Rocha, Ruy Guerra e Joaquim Pedro dialogaria com elementos da Nouvelle Vague durante a primeira metade da década de 1960 (reparem no uso do jump cut no momento exato da morte de Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”); na metade final da mesma década, o Cinema Marginal (ou udigrudi, de invenção) de Rogério Sganzerla, Júlio Bressane e Andrea Tonacci mergulharia ainda mais fundo nas influências francesas. Vieram também os Cinemas Novos do Japão, Portugal, Tchecoslováquia e Alemanha, até finalmente desembocar na chamada Nova Hollywood, cujo filme tido por muitos como a sua aurora tem clara inspiração em Acossado: “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas”, de Arthur Penn.
Nomes como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich, entre outros, jamais negaram a importância ditada pelos rumos da Nouvelle Vague em suas carreiras, e por mais que, como bem ditaram os próprios jovens turcos em seus artigos escritos na Cahiers du Cinema, o cinema de autor já fosse uma realidade de décadas nos EUA, dessa vez os cineastas estadunidenses pegavam para si a influência francesa como forma de produzir uma obra conscientemente autoral.
Passada a comoção causada por “Acossado” e com a Nouvelle Vague já consolidada enquanto movimento, os anos 60 foram um período de profícua produção cinematográfica para Godard, com o diretor atingindo a espantosa marca de quinze longas e oito curtas-metragens realizados em apenas sete anos. É nesse ínterim que surgem algumas de suas obras mais icônicas, tais como “Uma Mulher É Uma Mulher”, “Viver a Vida”, “O Desprezo”, “Alphaville”, “O Demônio das Onze Horas”, e “A Chinesa”, filme-símbolo de sua adesão ao maoísmo e que contou com um pitoresco veto em terras brasileiras, quando a pessoa responsável por censurar a exibição do longa se justificou alegando que tratava-se de uma “verdadeira aula de comunismo” em um “cinema dos mais perfeitos”, com uma “montagem de primeira”. O Instagram do Arquivo Nacional postou a imagem do documento (Veja).
Como artista inquieto que era, Godard nunca optou por abraçar a zona de conforto e num momento em que poderia tranquilamente continuar navegando pelas águas calmas geradas pela Nouvelle Vague, decide – para espanto geral – mais uma vez optar pelo radicalismo e funda junto a outros colegas o Grupo Dziga Vertov, assim batizado em homenagem ao realizador soviético, onde seriam realizados filmes de forte carga experimental e influenciados pelo marxismo. É deste período, por exemplo, que data “O Vento do Leste”, que conta com a participação de Glauber Rocha interpretando a si próprio. (Assista aqui).
Após o término do coletivo, já no fim da década de 1970, Godard inicia uma fase onde dirige filmes que parecem dialogar com a obra do começo de sua carreira, porém sem desapegar da inquietude, provocação e contestação. Destaca-se nessa fase o longa “Eu Vos Saúdo, Maria” (1985), objeto de grande celeuma por ter sido censurado no Brasil durante o Governo Sarney a pedido da Igreja católica.
Na década de 90 Godard dirige um curta-metragem de apenas 2 minutos e 14 segundos de duração intitulado “Je Vous Salue, Sarajevo” que apesar de sua aparente pequenez exala assustadora potência imagética alinhada à narração em off executada pelo próprio diretor.
Pelos anos vindouros o diretor seguiria sua trajetória de constante rebeldia artística, utilizando-se do arcabouço experimental como matéria-prima medular de seu cinema. Obras como “Nossa Música”, “Elogio do Amor”, “Filme Socialismo” e “Adeus à Linguagem” (que marca sua estreia em formato 3D sem abrir mão do experimentalismo) funcionam como provas cabais da inventividade proposta pelo franco-suíço.
Muitas vezes tido como complexo, não dá para negar que tal fama tenha lá seu fundamento. De fato, o cinema de Godard jamais conformou-se em trafegar pelo lugar-comum; o diretor a quem é atribuída a célebre máxima de que “toda história deve ter início, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem”, nunca teve temor em radicalizar no seu ofício e por mais que possa ter pesado a mão ou exagerado em dados momentos, o que é natural em uma carreira tão longeva, é certo que sua incessante inquietação rendeu frutos que persistirão habitando os corações e mentes daqueles que vivem a sétima arte, seja público, demais cineastas ou crítica, pois à mesma medida que seus filmes causam estranheza ou até mesmo repulsa, também produzem fascínio e emoção (não são raros os casos onde tais sentimentos contrastantes podem ser experimentados ao se assistir a um mesmo filme do diretor); de forma que é inegável o fato de que em boa parte de sua filmografia o realizador conseguiu a proeza de aliar rebeldia e lirismo com peculiar maestria.
O cinema teve em Godard o seu prodigioso arquiteto da construção, destruição e desconstrução, tal qual um alquimista rebelde capaz de forjar uma fênix à sua imagem e semelhança, a partida do diretor não apagará o colossal legado por ele construído ao longo de quase sete décadas de abundante atividade artística.
Se o Jean-Luc Godard tal qual o conhecemos não existiria sem cinema, o cinema por sua vez há de continuar existindo sem a sua presença física, mas não sem carregar consigo uma vasta gama de desígnios engendrados por um artista que em tempo algum teve receio de reinventar a si próprio e a arte que o eternizou. – Iuri Freire.
ONDE ASSISTIR AOS FILMES DE GODARD:
Acossado: Google Play/Apple TV
Masculino, Feminino: Mubi/Telecine Play
Eu Vos Saúdo, Maria: Telecine Play
O Pequeno Soldado: Telecine Play
Je Vous Salue, Sarajevo: Assista aqui!
Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela: Assista aqui!
Iuri Freire é agitador cultural aposentado, cineclubista semi-aposentado e futuro podcaster aposentado (Trincheiras da Esbórnia & Cine Trincheiras), gosta muito de filmes e de escrever sobre eles em: Trincheiras da Esbórnia e o Cine Trincheiras!
Uma resposta
Parabéns pelo belo texto!