O Brasil tem fama de não preservar e nem aprender com sua própria história e esse descaso também vale para a memória da cena rock alternativa. Porém, existem exceções, uma delas, é o MUSIN – Museu Independente, iniciativa do agitador cultural, cientista político e pesquisador de economia política da música Manoel J de Souza Neto. Rock Press conversou com o idealizador do projeto na Coluna 1,2,3,4…
MUSIN – MUSEU INDEPENDENTE:
Pela Memória do
Underground Brasileiro!
ENTREVISTA: Michael Meneses!
FOTOS e IMAGENS: Acervo MUSIN
Ao longo dos anos, a música e a arte independente no Brasil e no mundo são documentadas em vários meios de comunicação, que incluem fanzines, jornais, revistas, programas de rádio, na TV, em filmes, documentários e séries. Com o avanço da internet e das redes sociais a cena ganhou novos canais de preservação e pesquisa de sua história.
Porém, infelizmente muito do que foi feito ao longo dos anos se perde pelo desgaste do tempo, ou mesmo pelo descarte daqueles que já não se sentem conectados com aquela história cultural. Afinal, à medida que o tempo passa e as pessoas, por vezes, tendem a se afastar de toda a efervescência juvenil de outrora e em muitos casos, se não houver uma consciência em doar aquela coleção de flyers, cartazes de shows, fanzines, discos, gravações em fitas K7s e em VHS, fotos, livros, revistas, artigos de jornais… tudo pode acabar no lixo!
Sabemos que por descasos ou pelas necessidades da vida, o lixo pode ser o destino do acervo daquele entusiasta da cultura underground de outros tempos. Contudo, existem pessoas que, seja por hobbie, trabalho, pesquisas acadêmicas ou por reconhecer que aquele simples pedaço de papel xerocado, aquela gravação caseira, aquela foto analógica quase mofada são documentos históricos da cultura e merecem um destino digno, e assim possa ser apresentado para as atuais e futuras gerações.
Uma dessas iniciativas de preservação do legado do Underground é o MUSIN – Museu Independente, iniciativa que começou em Curitiba/PR, graças ao agitador cultural, polemista, cientista político e pesquisador de economia política da música Manoel J de Souza Neto, nome referência entre pesquisadores da cena underground em meios acadêmicos no Brasil.
Atualmente, Manoel está se afastando da coordenação, passando o bastão para a fanzineira Thina Curtis. A ideia não é se afastar completamente, mas ampliar possibilidades, “´…Queremos que a iniciativa se torne uma rede que dê potência e visibilidade aos detentores de saberes da cena, com uma ideia radical: transformar os saberes da cultura underground em patrimônio imaterial reconhecido, ou seja, título para Mestres do Underground!” – Definiu o Manoel.
A Rock Press apoia essa inciativa e conversou com Manoel J de Souza Neto, na Coluna 1,2,3,4… Saiba tudo na entrevista que segue:
1 – MICHAEL MENESES! / ROCK PRESS: Como surgiu a ideia do MUSIN? Conta essa história, suas realizações. O que te motivou a iniciar esse trabalho, quais desafios e sua importância?
Manoel J de Souza Neto / MUSIN: A memória das bandas, fanzines, palcos, DJs, programas de rádio, artes cartazes, demo-tapes, discos e outros elementos que integram a cultura da cena Underground surgiram na minha vida através da curiosidade com subculturas que existiam nos subterrâneos, para além da cultura erudita, popular ou da mídia de massas alienante. Provavelmente livros e filmes de ficção e distopias cyberpunk foram as minhas primeiras influências ainda na infância. Depois, a vivência da adolescência no final dos anos 80 me apresentou um universo efervescente de expressões, artes, criatividade, bem como pessoas, práticas e territórios, especialmente na cena underground. Isso era em Curitiba, uma cidade conservadora, com uma reforma liberal e processos de gentrificação com fama de cidade modelo. Enquanto a cidade se transformava, surgia um espírito de inovação, sentimento de pertencimento ao espírito do tempo, onde jovens queriam mudar o mundo (e a caretice local). Enquanto a cidade passava por reformas urbanas, os jovens entravam em contato com a programação da única rádio rock local (Estação Primeira FM), com festivais de bandas, novos espaços para shows (como o Aeroanta e bares de rock como Circus, Hole, Berlin, Linos e 92 Graus), clubes underground de música eletrônica (Época, Legends, Syndicate, e o já citado Circus), além de campeonatos de skate, festivais de música e shows nacionais e internacionais. Nas cenas resistentes, como Punk, Reggae, Hip-Hop, Metal, Eletrônico ocorreu forte efervescência, com pontos de encontros, circulação de informações, lojas de discos e roupas, virando também fenômenos de moda, com aumento de frequentadores com visual, que identificavam o que se chamava, de forma vulgar, de tribos urbanas. Coincide essa movimentação com o surgimento dos primeiros estúdios para bandas locais, enquanto internacionalmente ocorria o estouro do Grunge e, no Brasil, a abertura da MTV. Curitiba foi se integrando, pipocaram bandas e a cidade pegou fama de Seattle Brasileira. Eu era um mero observador destes fenômenos, um curioso, com enorme capacidade de localizar e guardar materiais etnológicos, pois vinha de uma família de pesquisadores, professores, bibliotecários e críticos de arte. Localizar, arquivar e analisar se tornou a minha prática diária desde 1989. Procurava no underground o rompimento com uma sociedade e família ao qual achava serem caretas. E quanto mais me aprofundava nessa viagem existencialista, poética, boêmia, sonora e visceral, mais me dedicava a arquivar materiais, fazendo uma arqueologia, etnologia dos ambientes marginais, resistentes à ordem e à propaganda do sistema vigente. Com apenas 21 anos comecei a aparecer na imprensa local com a afirmativas da mídia de que eu estaria descobrindo bandas obscuras e esquecidas, de que tinha um pequeno museu no meu quarto, o que resultou na criação de um selo de bandas (Mais Records), programa de rádio (Garage 96) e fanzine (Mais Zine), em que também dei vazão à produção daquela geração, colocando mais 450 de bandas na rádio e 150 bandas em demos, CDs e Coletâneas, além de 1.000 eventos em 15 anos de produções. Porém em 2002, para além das bandas, do som, das alteridades e das relações dos frequentadores da cena, a movimentação se tornou mais politizada, com atividades junto do Clube dos Compositores e em eventos como Os Charlatões, onde por 10 dias foram feitos debates sobre a economia, direitos autorais e representatividade na música. Depois daqueles dias, chamamos atenção de poderes, como associação de emissoras de Rádio e TV, ECAD, Fundações Culturais, OMB dentre outros, que se revelaram preocupados com as ideias radicais apresentadas lá, muitos nos indicando como possíveis inimigos.
Ainda como resultado destas movimentações, foi lançado o livro “A [Des]Construção da Música na Cultura Paranaense” (capa ao lado), que abordou os mais diversos aspectos da música do estado por meio de 80 artigos de 39 autores, em que fui organizador, e a proposição da criação de uma iniciativa de memória chamada Musin (Museu do Som Independente), tudo feito no esquema D.I.Y (Do It Yourself), o velho lema do “Faça Você Mesmo”. O acervo gerou um museu de resistência (um contra-arquivo), que não apenas guarda, mas contribui nas ideias, pesquisas, lutas políticas e processos de legitimação de identidades de culturas marginalizadas. Apesar da atuação do poder público em barrar iniciativas relacionadas à memória da música local (que não fossem oficiais), o acervo prosperou, tornando-se a coleção de cultura no Paraná que mais cresceu no século XX. Mesmo sendo uma ação contra hegemônica, antissocial e antissistema, a iniciativa frequentou a mídia, contribuiu ou foi citada em centenas de reportagens e principalmente na produção acadêmica em mais de 230 trabalhos científicos de diversos cursos e disciplinas, não somente locais, mas também nacionais e internacionais.
Além de estudos acadêmicos, também ocorreram contribuições com livros relacionados à cena rock, inclusive nacional (como “Dias de Luta”. de Ricardo Alexandre), e filmes sobre a cena local punk (“Punks da Cidade”, de Darwin Dias) e de bandas dos anos 90 (“Uma Fina Camada de Gelo”, de Vinicius “Tchê” Ferreira). Agora estas estruturas cresceram tanto que não cabem nas mãos de poucos, demandando estruturas coletivas que foram criadas e agora começam a dar seus primeiros passos com vida própria. De um lado, se formou a Fonoteca da Música Paranaense (com nova diretoria), e de outro, a rede de memória da cena underground Musin – Museu Independente. Em ambas, dezenas de colegas estão agora à frente, e eu fico grato por termos redes de pessoas interessadas, cada uma com belas iniciativas, que agora dialogam e agem mais próximas, como era na época dos fanzines e das cartinhas, portanto uma retomada do passado para olhar para o futuro. Cito como exemplo em estudo recente que está sendo feito sobre a própria origem do Musin e da Fonoteca como contra arquivos, realizada por Giove (Júpiter), estudante de história Itália/Brasil.
2 – ROCK PRESS: Embora a iniciativa tenha surgido em Curitiba/PR, o Musin atende todo o Brasil. Como vocês desenvolvem ações e pesquisas para abranger a cena nacional?
Manoel J de Souza Neto: Antes da existência da Fonoteca, o Musin foi criado para estudar a cena independente e underground. Em entrevista ao site Overmundo (projeto do antropólogo Hermano Vianna. Leia aqui) em 2006 já estava expressa a vontade de incentivar estudos de cenas locais em todo Brasil, sugerindo museus independentes em todos os estados.
Esta reportagem já apresentava na época conceitos inovadores como de acervos satélites, formados pelos acervos pessoais de cada integrante da rede, cada um em sua cidade, com seu acervo em casa, coletivo ou instituição não estatal, que juntos compõem o acervo do Musin. São constantemente estudadas alternativas para que estes acervos sejam digitalizados e em breve se tornem virtuais, outra inovação já que em parceria de alunos do curso de Tecnologia da Faculdade OPET (de Curitiba), orientados pelo professor Docca Soares (também do underground) no ano de 2010, se apresentou a proposta do primeiro museu totalmente virtual, ficando os acervos disponíveis e geridos diretamente na rede global, proposta que só não foi implementada ainda por falta de recursos.
Com o avanço dos estudos da cena local no Paraná, foram juntados tantos materiais relacionados a toda a música do estado, inclusive do erudito, MPB e sertanejo, que se percebeu que o objetivo do Musin estava se tornando contraditório. O nome já não refletia mais a abrangência que a iniciativa tomou, e por outro lado a memória da música local acabava por ser confundida com o nome Museu do Som Independente que se refere à cena underground. Então em 2018 surgiu a ideia de dividir as iniciativas em duas. De um lado, consolidar o Musin como uma rede brasileira de pesquisadores e acervos voltados às bandas, fanzines e cenário underground, enquanto do outro foi criada a Fonoteca da Música Paranaense voltada à música do estado em geral, com acervo atualmente com 400 mil documentos. Com a criação da Fonoteca e a alteração do Musin para condição de rede, em paralelo em 2011 foi criado o Observatório da Cultura do Brasil. Isso porque percebemos lá no começo do século que os estudos do Musin estavam tendo muitos desdobramentos em termos de estudos de sociologia, economia, política e aspectos jurídicos da música e da cultura, que acabaram tendo impacto nacional, em dezenas de estudos em outros estados e até fora do Brasil. Para além de estudos da música e cenários musicais, os esforços começaram a resultar também no impacto em estudos setoriais, que influenciaram pelo Brasil planos locais de governança e gestão de políticas setoriais de cultura e música, no plano nacional setorial de música do Ministério da Cultura (MinC). Além de impactar em grupos de trabalho e comissões governamentais em ambientes de regulação e legislativo sobre os mais variados assuntos onde a música se relaciona, em assuntos que vão da educação musical nas escolas, a legislação de direitos autorais, CPI do ECAD, a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), até estudos de criação de uma Agência Nacional da Música, mais da metade das propostas apresentadas na câmara setorial de música do MINC, partiram do Paraná. Essas pesquisas em níveis nacionais vêm se dando graças ao network acadêmico, político, técnico e com especialistas em temas variados da música, através de redes anárquicas, da cultura digital, da música independente e cenários subterrâneos (redes sem estado e sem partido). As trocas de experiências por meios digitais vêm facilitando no mundo as conexões.
Muitas vezes as pessoas perdem tempo com narrativas, gatilhos de polêmicas digitais operadas por bightechs com seus bots, algoritmos e psychographics, que controlam as mentes de forma ainda mais poderosa do que a velha mídia de massas alienante. As mesmas redes, no entanto, podem operar organizações e agentes que carregam contradiscursos no jogo de batalha de memes. E essas redes podem produzir saberes, cultura, arte e a criação de contra arquivos. Neste sentido, o que fizemos foi operar e hackear o sistema para produzir conhecimento antissistema. Além de pesquisas, relatórios, estudos, catalogação, também temos contribuído para difusão via canais web com debates, entrevistas, produção de conteúdos e trocas por redes sociais, com intuito de formação de agentes replicadores de saberes. Agora, com a mudança da gestão da rede Musin para Santo André, no ABC Paulista, com a coordenação de Thina Curtis, estamos nos reposicionando no sentido de descentralizar as pesquisas e transferir metodologias, para que ocorram arranjos entre pesquisadores multidisciplinares e especialistas nas cenas undergrounds de todo Brasil. A ideia agora é conquistar o reconhecimento de que os saberes do underground têm condições análogas às demais culturas e, portanto, são patrimônio imaterial e devem ter reconhecimento, ou seja, que os pesquisadores dessa cultura recebam título de “Mestres da Cultura Underground”. A Fonoteca da Música Paranaense, por sua vez, está com nova diretoria, com Rodrigo Amaral e Matheus Moro na direção, com um timão de pesquisadores e divulgadores da música local na diretoria. Em paralelo a isso, o Observatório da Cultura do Brasil e a Fonoteca da Música Paranaense ganharam total independência uma da outra, já não sendo mais a organização mantenedora do acervo. O Observatório da Cultura do Brasil, após a série A Crise da Cultura publicada em parceria com o Le Monde Diplomatique Brasil (leia), passou a estudos cada vez mais aprofundados e acadêmicos, relacionados às políticas públicas de cultura, mas também saiu um pouco do meu tema, que é a economia política da música, e até por isso as coisas estão se ajustando. O próximo passo agora será a divisão que vai derivar duas editoras diferentes, uma minha e outra do Digão Duarte com propostas diferentes.
3 – ROCK PRESS: Iniciativas como essas ligadas ao resgate e preservação da cultura independente ocorrem no Brasil e no mundo. Vocês dialogam com outros pesquisadores? Que impactos tiveram esses diálogos?
Manoel J de Souza Neto: Sim, temos dialogado tanto com agentes vivos da memória das cenas, como pesquisadores, e outros projetos que inspiram neste sentido, bem como inspirado novas iniciativas. No campo das redes sociais e plataformas digitais, temos trocado experiências em Lives em eventos como Conecta+ Música e Mercado (SP), Semana Nacional dos Museus, Primavera nos Museus (ambos promovidos pelo do Ibram – Instituto Brasileiro de Museus), bem como contribuído em listas e grupos de discussão, como o Memória Underground (Ex-90Under), por exemplo. Temos também promovido diálogos públicos com iniciativas como Demo-tapes Brasil do Edson Luís de Souza e o Disco Furado do Marcelo Mara, além da Senhora Fanzine Thina Curtis. Abrimos campo de diálogo com fanzinotecas, fonotecas e uma rede composta por aproximadamente 50 pesquisadores da cena under pelo Brasil, iniciativas que vão desde o Acervo Punk, até coleções de metal, museu da música eletrônica, acervo de revistas de rock, incluindo a Rock Press e diversos acervos de música underground que vão do Sul ao Nordeste. Além dos diálogos, isso vem fomentando novas pesquisas, com temas bem variados, que vão de estudos sobre cena metal e punk, fanzines, passando por estudos relacionados às leis de incentivo à cultura, economia política da música, direitos autorais, museus virtuais, mudanças na música na era do streaming, entre outros. Isso também tem impactado na citação do acervo e de pesquisas nossas em catálogos e listas de publicações pelo Brasil, obras de referência em bibliotecas de universidades no exterior e indicação de obras nossas na bibliografia de vestibulares, bem como de cadernos pedagógicos oficiais da Secretaria de Educação do Estado do Paraná.
Recentemente houve o reconhecimento do acervo e suas iniciativas entre as melhores do Brasil no Prêmio Dynamite, citações em estudos museológicos (nos enquadrando entre as novas instituições), bem como citação em catálogo nacional de museus do Ibram, além de prêmio de Iniciativa de Economia Criativa da Secretaria de Cultura do Paraná. Mas os mais relevantes resultados têm vindo no sentido de dar à luz do caminho, da necessidade de preservação dessas subculturas undergrounds, dando dicas, inspirando e apontando caminhos, já que o Musin é a primeira iniciativa nesse sentido “formal” (ainda que não estatal), de criação de espaços de memória do underground no Brasil. Algo que pode ajudar a muitos outros pesquisadores, no sentido de terem conhecimentos e estratégias para que também preservem suas coleções. Algo que agora está sendo feito em rede, unificando diversas iniciativas e trocas de experiências.
4 – ROCK PRESS: Com o mundo virtual, tornou-se mais fácil pesquisar acervos, catálogos musicais e realizar escritas. Por outro lado, ocorre também uma falta de interesse de parte das novas gerações em revisitar a história, bem como ler sobre música, vivendo apenas o imediatismo. Como o Musin pensa em driblar essa questão?
Manoel J de Souza Neto: Experienciamos uma geração anterior à digital, um mundo de mídias analógicas, pegamos a transição para o digital, e estamos agora envoltos neste novo mundo da inteligência artificial. Tudo em pouco mais de 40 anos. Sem saudosismo sobre a nossa época e geração. O que vou relatar, muitos entendem do que se trata. A cultura, os discos e livros eram, no nosso tempo, em sua maior parte inacessíveis, caros e em muitos sentidos difíceis até mesmo de se saber sobre a existência, devido à estrutura da mídia monopolista, que operava num sistema Top to Down, mas também pelas seleções de espaços museais, bibliotecas, acervos públicos, com recortes elitistas em alguns lugares, enquanto se presenciava a precariedade e a falta de materiais de consulta em sua grande maioria. A Informação não circulava! Então as pessoas que viviam autenticamente uma cultura, as subculturas underground, urbanas e periféricas somente acessavam informações através de mídias alternativas, catálogos, fanzines, programas de rádio alternativas, e através de trocas de cartas pelo correio em uma comunicação que podiam demorar semanas e até meses. Ou o acesso se dava quando alguém enviava um malote ou ia buscar pessoalmente nos grandes centros ou no exterior.
Aqueles amigos com mais recursos que iam para Europa, EUA vinham com mala lotada de discos e demo-tapes. Ou mesmo entre as bandas brasileiras, a circulação de informações era restrita. Literalmente você tinha que andar com uma turma informada para interlocução com quem tinha informações. Então antes da Internet existia um fenômeno de escassez de informação. Por ser escassa, também era valorizada. As poucas pessoas que faziam essa mediação, também acessavam estes materiais por meio de trocas de filipetas (panfletos impressos de propaganda) que eram colocadas dentro das cartas e enviadas aos interessados, em mailing lists restritas. E por serem poucas pessoas, estas se conheciam, ou conheciam um amigo de um amigo, pelo nome e correspondências escritas a mão ou máquina de escrever. Estes sabiam do que não estava na grande mídia, experimentando e divulgando as coisas mais bacanas e seletas de seu tempo. Eram o que é chamado de underground. Onde está este underground hoje? Uma questão para pensarmos. Com o advento da Internet, o Napster abriu o polo da localização de acervos digitais de músicas mais comerciais, mas não de difusão das críticas e informações escritas, mantendo o consumo restrito a o que se conhecia.
Com muito mais acesso à música em arquivos MP3, floresceu uma nova mídia alternativa digital escrita, com a migração da cena underground e independente para blogs e sites. Sobre isto, eu e o Digão fizemos um artigo intitulado “Do Fanzine ao Blog” no ano de 2004. No começo do século, as redes de divulgação de música ainda mantinham alguma relação com as práticas e redes anteriormente estabelecidas. Um canal de uma banda no site My Space não garantia a difusão integrada em redes e o efeito de engajamento das obras, ficando quase restrito aos iniciados ou aos dispostos a ficar horas por dia pesquisando em um mar de bandas. Ainda existiam leitores de música porque existia a necessidade de mediação da informação. Mas com a nova fase da internet na quarta revolução industrial, onde geolocalização, algoritmos e bots te decifram em seus gostos com extração de dados e perfil psicológico, o que ocorre é a manipulação do gosto. Isso ocorre via indicações das curadorias das plataformas que enviam automaticamente obras semelhantes para escuta, porém sem respeitar os artistas presentes nestas plataformas, já que as indicações são apenas das músicas que pertencem aos contratos de agregadores digitais e das velhas majors, garantindo o monopólio da arrecadação do mercado digital. E, portanto, uma variação do velho modelo, com manutenção de monopólios via Jabá 2.0. Apesar da quantidade de obras lançadas nas plataformas aos milhões, ocorre ampla exclusão, em um mercado de escassez artificial na divisão de mercados de nichos, pois somente poucos têm visibilidade sem precisar pagar para aparecer. No processo de indicação automática de músicas, tornaram obsoletas para novas gerações o crítico musical, o jornalista, o fanzineiro, o programador de rádios de músicas independentes e underground. A indicação é automática e cada vez com mais dados extraídos das pessoas, não apenas a máquina sabe o que lhe indicar, como as gravadoras recebem relatórios completos de tendências de escutas, que são tão detalhadas que geram dados da escuta com todas as preferências, como gostos, afinações, ritmos, palavras mais usadas, estruturas musicais, duração, gostos sexuais, tendência morais ou espirituais do que cada ouvinte busca. Fazendo com que rapidamente estes relatórios cheguem aos produtores com sugestões do que produzir. Na atualidade, majors como Universal, Sony ou Warner sequer selecionam seus catálogos de vendas e A&R (Artista & Repertório) em prateleiras virtuais de gêneros musicais, mas em perfis de artistas e músicas que transmitem arquétipos dentro das culturas identitárias, bem como sentimentos, sintomas e pulsões, para atender aos perfis psicológicos dos ouvintes.
Já não se trata mais de música neste negócio, mas de atender as demandas químicas, hormonais, sentimentais e sintomas dos consumidores. Estamos vivendo um tipo de ditadura da bightechs (tecnofeudalismo), que não está matando a música, mas a desvalorizando como previ no artigo “A popularização dos meios de produção e difusão da música, e crise na indústria fonográfica.: Revolução do precariado musical e contrarrevolução” para revista Lugar Comum 43, em 2015. (Leia aqui). Nunca a pirataria e a derrubada do sistema foram tão necessárias, e artistas deveriam abandonar as plataformas de música, que não são feitas para gerar justa distribuição, mas apenas ampliar abismos diante do lucro de poucos. A volta aos lançamentos em mídias físicas constitui a única coisa que pode beneficiar os artistas que queiram viver de música. Quanto aos leitores, sim, as novas gerações não apenas não estão lendo o jornalismo musical, como estão deixando de ler e de escrever. Aliás, cientistas já falam em emburrecimento acelerado da geração Z com relação às anteriores, mesmo com o aumento de acesso à informação. Mais do que quantidade, as pessoas estão perdendo senso de qualidade, e mais, não se relacionam com as expressões culturais, não analisam e estão perdendo a capacidade de saber o que fazer com a informação. A inversão desta situação demanda ações educativas e da criação de movimentos que engajem as pessoas em redes de relações reais, externas ao ambiente digital.
5 – Rock Press: O que é preciso para participar do MUSIN e da Fonoteca da Música Paranaense? O que vem pela frente e aproveitando, deixe uma mensagem final aos leitores da Rock Press…
Manoel J de Souza Neto: Para participar do Musin, deve-se dirigir ao coletivo. Por enquanto ainda não existem formas diretas de consultas aos acervos dos colecionadores pelo público em geral. Mas já estão sendo planejados os novos canais de redes sociais e sites do Musin, já com a gestão coletiva e colaborativa. Quem é de uma cena, que tem pesquisas pessoais, jornalísticas ou acadêmicas, é fanzineiro, tem memórias e documentos sobre suas cenas locais ou nacionais, pode somar com o coletivo integrando a rede. Pode entrar em contato com a Thina Curtis, coordenadora da rede por e-mail, para colaborar com o coletivo, ou por meio de pesquisadores das cenas locais que já estão somando na iniciativa, como por exemplo a própria Rock Press. Já com relação a Fonoteca é possível entrar em contato com a diretoria também por e-mail.
Passo o bastão da coordenação destas iniciativas com a sensação de dever cumprido, mas também muito feliz em ver novos rumos e potências se formando. O que vem pela frente é inovador. A fusão de memórias, patrimônio material e imaterial do underground, com redes nacionais de especialistas que detém os saberes e meios de preservação com as novas tecnologias e redes sociais, proporcionando novas formas de mediações com aqueles agentes que mais entendem do assunto. Com isso quebrando com os frios algoritmos e (des)inteligências artificiais que mediam as plataformas de música e cultura, invertendo essa lógica, proporcionando relações diretas para a sociedade com a experiência humana e suas subjetividades. A nova fase do underground não pode apenas colocar as pessoas em contato com estes saberes, práticas e culturas, mas na lógica cyberpunk precisa enfrentar as máquinas para não cair na vala comum das distopias e seus resultados que levam a humanidade, já na atualidade, ao que se chamou há 40 anos atrás na ficção-científica de “high-tech & low life”, definição do futuro tecnológico que dará errado, utilizado por autores como Bruce Bethke, William Gibson, Bruce Sterling, dentre outros. O futuro da memória das cenas resistentes depende de consciências e de projetos que divulguem ideias críticas, que produzam sujeitos e subjetividades.
Recomentamos…
A história brasileira, sempre mostra que a não preservação e o esquecimento dos fatos é um risco, incluindo esferas políticas como saúde e educação, e claro, a cultura. Portando, fica a dica ao você leitor Rock Press, apoie e participe desse projeto (contatos abaixo).
Nota do Editor/Entrevistador…
Não apenas como o atual editor da Rock Press, assim como colecionador, pesquisador, fotojornalista, pós-graduado em artes visuais, cineasta, maluco de carteirinha e produtor me sinto honrado em participar desse coletivo, em especial pela certeza que estarei aprendendo ao lado de tantos amigos que ao longo das décadas produzem, escrevem e eternizam a memória do underground do Brasil. E, como já disse o pesquisador e documentarista de fanzines, Marcio Sno: “Se Ninguém Faz, Façamos!” #Recomendamos. – Michael Meneses!
MUSIN – MUSEU INDEPENDENTE – CONTATOS:
E-MAIL: museuindependenteoficial@gmail.com
FACEBOOK: www.facebook.com/museuindependente
YOUTUBE: www.youtube.com/@museuindependente
INSTAGRAM: www.instagram.com/museuindependente
BIBLIOTECA VITUAL DO MUSIN: https://drive.google.com/drive/folders/10aQnKJtEr-NSrn3VMi5nuwaYUO_ddObC?usp=drive_link
FONOTECA DA MÚSICA PARANAENSE: fonotecadamusicaparanaense@gmail.com
CONHEÇA:
ACERVO PUNK: https://acervopunk.com.br/
THINA CURTIS: https://www.instagram.com/thina_curtis/
DEMO-TAPES BRASIL: https://demo-tapes-brasil.blogspot.com/
OBSERVATÓRIO DA CULTURA: youtube/observatoriodaculturadobrasil
MEMÓRIA UNDERGROUND: https://www.facebook.com/groups/555817721453083
CONECTA+ MÚSICA E MERCADO/SP: https://www.youtube.com/@MusicaemercadoBr
SEMANA NACIONAL DOS MUSEUS: https://www.youtube.com/watch?v=xgq2M2m0GWk&list=PLDun_yenhksrG1SWceoFYvKE2M1xWwi6s
PRIMAVERA NOS MUSEUS: https://www.youtube.com/watch?v=52dJ5lMk8f4&list=PLDun_yenhksqV7neaYj1F1BZlwCpcyRP5
MICHAEL MENESES – É o editor da Rock Press deste 2017, criador do Selo Cultural Parayba Records, fotojornalista desde 1993, foi fanzineiro nos anos 1980/90, jornalista e cineasta de formação, pós-graduado em artes visuais. Fotografa e escreve para diversos jornais, revistas, sites e rádios ao longo desses últimos 30 anos, também realiza ensaios fotográficos de diversos temas, em especial música, jornalísticos, esporte, sensual, natureza... Pesquisa, e trabalha com vendas de discos de vinil, CDs, DVDs, livros e outras mídias físicas. Michael Meneses é carioca do subúrbio, filho de pai paraibano de João Pessoa e de mãe sergipana de Itabaiana. Vegetariano desde 1996. Em junho de 2021 foi homenageado na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro pelo vereador Willian Siri (PSOL/RJ), com monção honrosa por iniciativas no audiovisual e na cultura suburbana. Torce pelo Campo Grande A.C. no Rio de Janeiro, Itabaiana/SE no Brasil e Flamengo no Universo. Atualmente, dirige o filme, “VER+ – Uma Luz chamada Marcus Vini, documentário sobre a vida e obra do fotojornalista Marcus Vini e em julho de 2024, realizou a quarta edição do Parayba Rock Fest.